segunda-feira, 29 de junho de 2009

Flagrante

Fui pego te olhando
numa manhã de chuva
Ao invés de preso, condecorado:
permanente dono dos olhares teus.

Liberdade condicional, todavia
o decoro a minha cela vigia;
Obstinado, me prende em silêncio:
sonho em tocá-la todos os dias.

The Last Kiss

Foi assim: estava jogada na cama do meu quarto, fazendo uns exercícios de química. A dor de cabeça me fazia ver o mundo pulsando, os elementos andavam e desandavam pelas colunas da folha. Eram umas nove da noite e eu já estava cansada.

Aí você chegou, sorrindo como sempre. Não que isso me surpreenda, ou que seja novidade, mas eu achei aquele perfume inebriante, mesmo no final do dia, cansado e suado, depois do trabalho. E como mudara o jeito de se vestir! Os jeans ficaram jogados no fundo do armário, junto com as toneladas de camisetas pretas. Aconteceu da noite para o dia: elas foram sorrateiramente substituídas por sapatos e camisas de botão. O cabelo desgrenhado, sempre tampado por um boné, também desaparecera. O cordão de bolinhas que eu dera já estava feio e enferrujado, porém, jamais saíra do pescoço; e, no fundo, aquilo me aliviava um pouco. O jeito também continuava o mesmo: nunca conheci ninguém com uma gargalhada tão escandalosa. O menino estava escondido no fundo do bolso da camisa, do lado do peito.

Enfiou-se pela porta adentro pra conversar com a minha mãe; você não sabe o quanto ela gosta de você; ou melhor, sabe sim. Gostava quando vocês ficavam sentados, conversando baixo (geralmente sobre mim). Sentia uma paz sem tamanho.

Foi pra cozinha tomar café; segui com uma formalidade que se tem com as visitas; mas de visita você não tinha coisa alguma. Batera na porta pra entrar apenas por um motivo: na última briga, jogou a chave de casa fora, de raiva. Uma bobagem, uma grande bobagem. Mas tudo bem; não havia de ser um problema abrir a porta pra você. Abandonei a mesa e recomecei o dever de casa, distraída.

Entrou no meu quarto, falou de uma bobagenzinha aqui, me mostrou um vídeo ali. Peço desculpas por não ter dado muita atenção, mas os exercícios de química não estavam nem na metade, e eu realmente precisava terminá-los antes que minha cabeça explodisse ou despencasse do pescoço. Afagou os meus cabelos e disse que iria dormir. Sumiu no corredor escuro.

Eu sabia que você não estava ali, de todo, pra uma visita; do jeito que te conheço (e bem, e como conheço), eu já sabia do seu objetivo. Quando você ronda, desconversa, inventa, ri, e dá voltas e dá mais voltas, é porque quer dizer alguma coisa. Mas não sabe como, ou por onde começar. Eu sabia disso, mas permaneci em silêncio com o meu paracetamol rolando pela garganta. Vendo que aquilo não daria em nada, segui pro seu quarto, tentando não fazer barulho. A televisão estava ligada baixinho, pra não acordar meu tio. Você me disse boa noite, depois seguiu sem rodeios:

-Ei, do que é que você tava falando ontem, hein? – perguntou.

Touché. Entregou o ouro fácil dessa vez. Enrolei o máximo que pude: falei da escola, da minha mãe, das vontades, do estágio. Por fim, após um olhar de repreensão, abaixei a cabeça, meio sem jeito.

-Acho melhor a gente parar de se ver... – respondi.

-Pára de besteira...

-Não é besteira, é sério. Nunca falei tão sério – e era verdade.

Eu, naquela hora, não sabia e não conseguia explicar, pelos mais diversos fatores que não vem ao caso aqui. Nos últimos tempos, a sua falta passava a ser tolerante pra mim. Depois, passava a ser conveniente; por fim, passara a estar implícita. Sentia uma vergonha sem tamanho de lhe pedir qualquer tipo de ajuda, o que tornava qualquer problema meu um segredo. Lembrei-me mais tarde do dia que você me ligou, disfarçando um pouco de desespero, como quem quer ouvir uma palavra de conforto. Mas na hora, naquela hora, não me recordei da ação que a sua ação podia ser recíproca; naquela hora me pareceram ridículas todas as minhas ligações, todos os emails, todos os chamados e convocações: “Socorro, me ajude pelo amor de Deus, que eu preciso de você!” Eu me sentia patética e incapaz, como uma dependente que não consegue retomar as rédeas de si mesma.

Você era a minha droga, e aquela era minha crise de abstinência; eu precisava me lembrar que você não estaria o tempo todo à disposição dos meus caprichos e vontades de novo... E nunca deveria ter estado. Mantive-me firme na decisão.

-Talvez você não entenda, mas me deixa explicar...

-Explicar o quê? Olha, eu não estou entendendo nada, o que é que te deu...

Dessa vez, não era nada. Não era influência de ninguém, não era conversa, filme, livro, estapafúrdio. Como eu sou influenciável! Parei por um milésimo de segundo pra meditar sobre isso, depois voltei:

-Dessa vez, é comigo mesma.

-Você só está confusa. Eu te conheço...

A esse ponto, nossas mãos já estavam juntas, presas numa espécie de jogo contínuo de dedos. Assustada, soltei. Aquilo fora força do hábito. Um hábito que havia de ser apagado. Mas meus pés ainda estavam encostados nos seus.

-Eu sou substituível, você vai ver. É que você vai encontrar alguém e essa necessidade de se afastar vai acabar sumindo... – ele deduziu.

Pensei nela, na garota. E não a invejei por nenhum segundo; nossa cumplicidade me pareceu quase traidora e quase errada. Ela nem sonha que isso estava acontecendo, nem jamais vai pensar. E é melhor assim. Bem melhor... Calei e ele prosseguiu como se o silêncio fosse um atestado:

-Tudo bem, se é o que você quer. Eu respeito sua decisão. Mas, vai ser estranho. Constrangedor, sabe? Você vai ser uma daquelas pessoas que a gente encontra na rua, dá um sorriso sem graça – encenou –e vai embora.

- Talvez seja melhor assim. Pelo menos por agora.

-Eu me preocupo com você. Você sabe o quanto é especial pra mim...

Ele me olhou no fundo dos olhos, coberto de verdade. Engoli em seco: essa frase passou raspando pelos meus ouvidos e ecoou por milhões de vezes na minha cabeça, o jogo de mãos foi retomado e eu demonstrei reciprocidade com um grunhido quase ininteligível. Ele retomou:

-Tudo bem. Agora, vai dormir. Você tem que acordar cedo. Você sabe que...

-... Talvez seja a última vez que a gente se vê?-assenti.

A essa altura, eu não segurava nem disfarçava lágrima nenhuma; se aquilo era ou não o certo, eu ainda não descobri. Doeu um pouco o peito de ver como ele havia mudado, doeu sim. A luz do vizinho entrava pelas frestas da janela, desenhando no cobertor sobre os nossos pés. Ele sorriu e exclamou:

-Sua casa é tão simpática, eu nunca havia reparado algumas coisas nela. É que às vezes era tão difícil estar aqui...

Não pude conter um sorriso. Eu sabia que era difícil. Mas, veja bem, não era difícil só pra você. É que éramos (e ainda somos) tão, tão novos, que não entendemos tantas coisas! Cada dor, cada palavra parecia uma marca feita a ferro, que não iria se apagar nunca, e parecia a última... E de repente, já maltratados pelas verdades que jogávamos um na cara do outro, já estávamos serenos, uma forma mórbida de paz. Ao mesmo tempo, eu encontrava seus olhos cansados das horas que não paravam de passar, cobertos de uma doçura que eu não sabia entender nem explicar. Eu me indignava, e ainda me indigno sempre! Como é que você é sempre tão seguro de si? Como é que você apaga os seus rancores? Como é que você não sente dor? Lembrei-me que você sempre soube disfarçar melhor do que eu. Sempre soube... E eu não. Não, eu não queria que aquilo acabasse. E jamais conseguiria fingir e me submeter à sua vontade; naquele momento eu só queria um pouco de paz comigo mesma.

-Talvez eu esteja um pouco confusa, sim. Mas minha decisão é essa – sentenciei.

Você concordou, resignado e cheio de respeito.

Mas a confusão não ia ajudar; o cordão umbilical jazia, finalmente, rompido. E mesmo assim, só de olhar os seus olhos, embora você escondesse um milhão de coisas, eu quase as lia, devagarzinho, como que um filme legendado naquele idioma que só eu entendia, mas que não ouvia nunca. Desvendei milhões de coisas que eu sabia que jamais ouviria saindo da sua boca. Vi no fundo dos seus olhos a confusão, vi uma pontinha de amargura, vi uma dezena de perdões guardados, assim misturados com resignação muda. Vi uma dor fininha no peito, tão bem escondida e disfarçada, que eu pensaria ser um cisco, um ponto se não fosse... Tudo isso bem guardado, naquela embalagem de homem adulto, forte. E o Oscar vai para...

Não, ele não conseguiu esconder uma coisa. Demos o abraço mais forte do mundo, e quase sem querer, senti o seu coração disparado, batendo tão forte que eu pude sentir, encostada em seu peito. Ri e o delatei:

- Isso você não consegue disfarçar, não mesmo.

Naquele momento, eu me desfiz da maioria das minhas mágoas, dos meus ressentimentos. Naquela hora, nada disso ia me adiantar de nada; todas as brigas e ofensas pareceram desnecessárias e vazias; todos os segredos foram revelados pelos olhares.

E, antes de ir dormir, fotografei com os olhos o seu sorriso: o último beijo foi na testa.

domingo, 28 de junho de 2009

Verdade Absoluta

A gente não se completava:
se anulava.

terça-feira, 2 de junho de 2009

Eletrônica Analógica

O estômago faz senóides
No peito em altos e baixos
quando por entre fios e cabos
sinto a frequência de teus olhos